Correntes


Há algum tempo quero fazer o registro de uma história. Já se passou tanto tempo desde este evento e tantas coisas se somaram a ele que é difícil descrevê-lo de maneira simples. Repensei o que aconteceu em diversas perspectivas e sendo este um evento violento, me pergunto sempre quais fatores o acarretaram os murros que levei e o celular que perdi.

Um amigo até fez desenho, enquanto ria de tudo.

Acho que posso começar discutindo a questão da imagem, que me preocupa bastante. Agora são 19:47 e alguns minutos atrás eu fui no mercado comprar pão, na volta, já quase na frente de casa, olhei pra trás e um homem me perguntou:

- Ei playboy, tem um cigarro ai?
- Ah não, tenho não.
- Nem R$2?
- Ha, - um riso meu sem graça - também não.
- Pow, quando eu tô usando os cara nunca tem dinheiro. Agora eu tô sofrendo aqui, toda hora só piscando – enquanto apontava para as pálpebras.

Não sou muito vaidoso, mas me pergunto frequentemente quais signos, presentes na forma de roupas ou nos corpos, como expressões faciais; possibilitam que as pessoas construam significados. As imagens de coitado; de “cidadão do bem”; de trombadinha; de mulher de família; têm reverberações no sistema de justiça e eu honestamente duvido que grande parte dos juízes que retorcem o nariz para a psicologia tenham consciência do inconsciente.

Eu não entendo o porquê de eu ser o playboy. Não sou branco, não vou à academia, não uso pulseira de prata, nunca tive ânsia para ter uma carteira de motorista e não tenho tesão por carros. Mesmo assim, parece que me enquadro.

Me chamar de playboy é uma abordagem bem comum. E foi utilizada em 25 de outubro de 2012, quando o roubo aconteceu. A última vez que contei publicamente sobre isso foi na aula de Psicologia. Discutíamos sobre os preconceitos de cor, sexo, classe, nacionalidade, idade, coisas que vemos na mídia constantemente, são discutidas na escola e ainda vivenciadas.

Eu me policio constantemente para evitar ser discriminador, a gente não se livra fácil desses preconceitos. Naquela noite de outubro eu olhei para três rapazes andando de bicicleta no Parque da Maternidade, enquanto eu estava sentado ouvindo música e os encaixei nas classes “mata-gatos” e “com cara de bandido”. Me lembro de, além do sentimento ruim, ter pensado:

- Ok, Gustavo. Você é muito preconceituoso. Só porque você acha que eles são assaltantes não quer dizer que sejam. Da mesma forma como você, eles podem estar só curtindo a noite, da maneira estranha deles.

Continuei sentado curtindo minha música.

Eles deram um volta no canal e voltaram. Na volta, pararam as bicicletas na minha frente. Um sentou do meu lado e disse:

- E ai, playboy, beleza?
- Harram
- Passa o celular.
- Não. – segurei e apertei o botão de foda-se. Resisti.

Ele se levantou e começou a bater, enquanto eu estava sentado. Eu me encolhi e fiquei assim por uns segundos. Levando murros nas costas, pensei que precisava reagir e olhei para frente sem levantar muito a cabeça.

O que me veio à vista? Agarrei os testículos dele.

Não venha chamar de golpe baixo. Era um assalto.

O segundo que só olhava e ficava de guarda vendo eu levar murros, ouviu:

- Doido, ele tá segurando o meu saco.

Dai, ele veio de bater também. O que pediu uma nova reação. Me levantei e vi a necessidade de reagir com punhos. Claro, eu apanhei bastante. Ser um playboy e ir na academia teria me ajudado nesse momento.

Em algum momento meu celular caiu no chão e o terceiro, que segurava uma corrente - não de prata, de aço mesmo -, catou e voltou a se distanciar. Depois disso eles pararam de brigar, o segundo catou a mochila que ele tinha jogado do chão e foram embora com o meu celular.

Menos de 5 metros havia uma Sr.ª sentada com a filha olhando tudo isso. Menos de 20 metros havia um restaurante com várias pessoas bebendo, comendo e pagando caro. Ninguém chamou a polícia ou me ajudou.

Quando me aproximei da mulher no banco pedindo o celular para chamar a polícia e disse que havia sido assaltado, ela disse que achava ser uma briga de gangue rivais. No caso, imagino que, na mente dela, eu, sozinho, era uma das gangues.

Quando a polícia chegou, não desceram do carro, perguntaram o que tinha acontecido, perguntaram se o inchaço na minha cara foi causado por eles, se eu queria dar uma volta para tentar encontrá-los e por fim, um dos polícias insinuou que, mais cedo, eu teria estado presente numa ocorrência anterior.

Quando contei isso na aula de Psicologia todos riram.

Se eu tivesse saído dali só em olhar aqueles três eu teria me poupado? Eu acho que sim.


Se eu fosse branco, fosse à academia, usasse pulseira de prata e tivesse um carro, isso teria acontecido? Eu teria sido ignorado e confundido com um criminoso? Eu acho que não.

O eventos posteriores talvez mereçam atenção depois.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Coesão

Pesquisa como um mecanismo social

Zona de conflito